89- Desabafo




Certo dia estava eu aguardando a chegada do médico que iria me atender, sentada em uma das cadeiras dispostas no corredor do hospital quando uma bela e jovem mulher me deu bom dia.

Até ai tudo bem não é mesmo, super normal e faz parte da boa educação saudar quem esta ao seu lado.

Sempre que vou para algum tipo de consulta carrego um livro na bolsa para casa aconteça ocorra atrasos no atendimento eu não fique entediada. E lá estava eu com meu livro aberto, me posicionando para iniciar a leitura quando essa jovem mulher iniciou uma conversa. Iniciou dizendo que também gostava de ler, que fazia sempre, mas que há tempos não estava tendo tempo, pois a vida profissional estava corrida demais. Rendi um pouco a conversa e tentei retornar a leitura.

Creio que não tenha conseguido terminar a primeira página quando ela novamente puxou a conversa. Marquei com o dedo o local onde tinha parado a leitura e tentei dar a ela a atenção necessária.

Ela começou dizendo que a vida é muito engraçada, que em um dia você esta imensamente feliz e que em outro deseja não mais sair do quarto. Nesse momento entendi que existia ali uma pessoa precisando jogar para fora algo que estava lhe fazendo mal.

Eu confirmei a afirmação dela e a questionei se estava tudo bem. Ela com um sorriso amarelo me respondeu que sim, que naquele momento estava tudo bem sim, mas que sua vida estava um tanto quanto confusa. Por motivos profissionais ela se mudou da cidade, estava solteira e  foi sozinha, estava muito empolgada com a proposta, com o desafio.

Chegou à cidade onde iria morar e conseguiu rapidamente se adaptar. Estava com seu apartamento montado para atender suas necessidades, tinha um emprego agradável, estava recebendo bem. Como estava fora de sua cidade natal e longe de seus parentes e amigos precisava se ocupar nos momentos de folga. Inscreveu-se para uma pós-graduação e se matriculou em uma academia. Tudo ótimo, a vida seguia favorável. Com o tempo já tinha alguns amigos, conheceu pessoas interessantes e tinha até programações bem agitadas para seus finais de semana. Estava tudo indo bem melhor do que imaginava.

Na academia que frequentava começou um acompanhamento com um personal trainer e ali iniciou o “desastre” de sua vida (estou usando das palavras dela). Ele um jovem bem afeiçoado, com uma disposição impar em ajudar no desempenho físico dela e dos outros alunos admirável, animado, divertido e cheiroso (lembro do sorriso dela ao fazer a descrição). Era sempre uma diversão o tempo que passavam juntos na academia. O relacionamento foi crescendo, começaram a participar de eventos fora da academia juntos, sempre com outros colegas. Eles tinham afinidade em vários assuntos e isso fazia com que estivessem sempre próximos nesses encontros, falavam de músicas, filmes, gastronomia, perfumes, peças de teatro. O tempo foi passando e ele cada vez mais próximos até que um dia resolveram sair sozinhos, sem ter a turma por perto e foram jantar. A noite foi maravilhosa, foram muitas risadas, papo bom, a musica no ambiente estava ótima, a comida perfeita, ela se sentindo bonita e ele mais bonito que o normal. O esperado então aconteceu... o beijo. Ela me relatou como se fosse uma cena de filme, algo mágico, muito especial. Tudo estava perfeito demais. 

Quando saíram do restaurante onde estavam, na despedida ele disse a ela que seria melhor esperar um tempo para contarem aos conhecidos sobre, pois seria necessário ver se era isso mesmo que os dois queriam. Ela achou “bunitin” da parte dele.

Os dias foram passando e ela cada vez mais apaixonada. Trocavam presentes, iam a cinemas, teatros, shows juntos sem estarem juntos.

Em um determinado final de semana precisou voltar a sua cidade natal por urgência familiar, avisou a ele e alguns amigos mais próximos que ficaria fora por alguns dias. Tudo certo...Só que não, não para ela que estava apaixonada e acreditava na reciprocidade.

Em um dos dias, enviando mensagem a uma de suas amigas próximas ela disse que estavam em um Pub (bar pequeno) e que o então “amigo” tinha acabado de chegar acompanhado de uma linda morena.

Ela engoliu seco do outro lado do telefone... não podia nem questionar muito, porque seu envolvimento com o então “amigo” não era aberto, por mais que algumas pessoas desconfiassem.

Resumindo, porque a história foi bem longa, para ter uma idéia o médico atrasou 1h, e eu estava ali só para ouvir, mesmo sendo uma pessoa para mim desconhecida, existia nela uma necessidade de desabafar.

Ela precisou pedir licença do trabalho e ficar 15 dias em sua cidade. Por aplicativos disse a ele que ficou sabendo da morena, questionava o porque da mentira e ele dizia que não tinha nada com ninguém e que a mulher era apenas uma amiga.

Levou esse relacionamento com desconfianças por 2 longos anos até o momento em que descobriu a verdade, ele era noivo de uma mulher há 5 anos, essa morava em uma cidade do interior do estado e os dois só se viam de 15 em 15 dias, quando ele ia ao encontro dela.

O desespero tomou conta do seu coração no momento, quis sumir, se sentiu pequena demais diante a situação, viu o quanto de dinheiro tinha perdido com presentes caros e empréstimos que nunca foram pagos, se julgou, xingou, brigou com Deus, desencadeou um processo de depressão. Só não conseguiu fazer o necessário, que era se afastar do personal.

E ele aproveitou da situação, a chantageava emocionalmente, a menosprezava profissionalmente e dizia que ela não seria capaz de conseguir algum outro companheiro melhor que ele, pois se ela terminasse ficaria sozinha, e ela acreditou.

Levou a situação até o ponto de prejudicar sua saúde e sua profissão.  Foi demitida da empresa que trabalhava, estava com dores em todo corpo. A tristeza era tamanha que não queria sair do apartamento onde morava até que resolveu passar uns dias na casa de seus pais, mas dessa vez não avisaria a alguém.

E como ela disse – “Foi a melhor coisa que fiz, voltei para minha origem”. No primeiro momento só contou que tinha sido demitida, não contou nada sobre seu desastre afetivo. Mas ela não conseguiu estar por inteiro. Vários dias se passaram até que conseguiu conversar com uma amiga, abriu seu coração, chorou e esperou ser julgado por ter mantido um relacionamento com um homem noivo por tanto tempo. Nesse momento a amiga a acolheu em um forte abraço e disse que ela precisava voltar a cidade onde morava para colocar um ponto final na situação e principalmente precisava mostrar ao personal que ela podia até ter sido fraca por aceitar viver na situação em que estava, mas que ela vinha de uma família com base sólida e que ela não precisava da aprovação dele para continuar caminhando. Em momento algum a amiga a julgou, pelo contrário, se dispôs a ir com ela a cidade buscar suas coisas.

Assim ela fez, resolveu se dar uma nova chance. Com a autoestima elevada terminou o relacionamento que não devia nem ter começado, sofreu porque existia nela uma dependência grande de alguém que sugava suas energias. Mas existia nela uma fé adormecida (adormecida mesmo, porque como estava longe de casa não achava necessário ir a igreja com a mesma religiosidade, acredita que fazia isso por seus pais) que a impulsionava, a fazia acreditar que dias melhores estavam por vir.

Não foram fáceis os dias com o seu regresso. Sentia falta da liberdade, sentia falta de ter seu cantinho, de sua independência. Fez um longo acompanhamento psicológico e teve também que fazer tratamentos com médicos especialistas para curar feridas em seu corpo. Precisou de tempo também para curar as feridas em seu coração;

E eu.. como eu estava a essa altura do desabafo? Me perguntava a todo momento se eu já conhecia essa linda mulher de algum lugar... Não entendia o porque de ter escutado uma história tão intima de alguém desconhecido. Eu não tinha palavras para continuar a conversa, não sabia o que fazer além de escutar. Foi então que o médico que ela aguardava a chamou pelo nome e ela com um olhar sereno me fitou nos olhos e disse “moça, desculpe-me por despejar em você minha história, a gente nem se conhece né, mas senti ao te ver que eu poderia desabafar, obrigada viu, estou até me sentindo melhor”. Desejei melhores dias e pedi a Deus que a abençoasse.

Fiquei atônica... Totalmente sem reação depois que ela entrou no consultório. Pouco depois fui atendida pelo médico, no final do atendimento voltei para minha rotina e no caminho para o trabalho fiquei pensando no desabafo, no desprendimento ao relatar com detalhes sua tragédia intima a alguém que não conhecia.

Me veio a mente as inúmeras reportagens sobre assassinatos de mulheres, sobre as agressões físicas e morais, sobre a constância na falta de respeito para com o outro, sobre os assédios e  consegui enxergar a relação disso tudo com o que eu tinha acabado de ouvir. Sobre a dependência emocional que depositamos em pessoas que pouco conhecemos.

Ela que era totalmente bem resolvida, se viu pequena e fraca diante do relacionamento após descobrir a verdade. Esse homem esperou conquistar a confiança e o afeto dessa mulher para mostrar suas garrinhas, tudo poderia ser diferente se a conhecida não tivesse relatado que ele estava acompanhado no bar, a mentira poderia ter a encoberto até hoje e ela continuaria a vida acreditando que estava vivendo um romance moderno. Muitos seriam os prejuízos financeiros e ela poderia até nem mesmo reclamar já que estava apaixonada.

Essa situação aconteceu há tempos e sempre que vou a algum consultório me lembro dela. Continuo carregando meus livros, mas entendi que ouvir o outro é uma arte, é um processo de aprendizado e de cura, que pode ser para quem fala como para quem ouve.

Eu aprendi muito com ela, aprendi que nossas raízes são realmente essenciais em nossas vidas. Temos essência e essa é o nosso escudo contra as dores do mundo. Deus, família e amigos serão sempre nossos principais pilares. Consegui enxergar no desabafo dessa desconhecida à história de várias pessoas próximas que vivem em prisões afetivas, financeiras e que não conseguiram ver a verdade.

E o mais importante (ao meu olhar), aprendi que com tantas relações superficiais e tanta modernidade temos deixado de lado nossa base e muitos são os que precisam pagar um preço alto para retornar ao porto seguro.

Já se colocou a disposição do outro para escutar, sem a necessidade de dar sua opinião alguma vez?
Você vive em algum tipo de prisão?

#Liberdade #Emocoes #Escuta #Silencio #Cura #Restabeleça

                                                                                                                    

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